Eram três da tarde de um dia solarengo e ameno, naquela cidade que vivia dos arrufos das nortadas que a fustigavam o ano inteiro.
O posto de correios tinha acabado de abrir, e
a nova remessa da teoria do fole vinha agora em fascículos, pronta a ser
distribuída pela rede de entrega juntamente com as pensões de reforma e as
multas de excesso de velocidade.
Alcinda trabalhava naquele posto de correios
já fazia mais de 40 anos. Na altura iniciou-se como telegrafista, encriptando e
enviando milhares de mensagens morse por esse mundo fora. Viu os selos darem
lugar à trabalheira das encomendas postais, a venda automática de estampilhas
foi uma novidade, o serviço de entregas urgentes um avanço da sociedade
moderna, mas nem a vanguardista internet
conseguiu destronar o carinho das pessoas pelos "Correios". Talvez
porque as verdadeiras cartas de amor só se escrevam em papel...
Preparava-se para atender uma cliente,
quando entrou no posto o Zeca da latoaria. Vinha com o seu filho que se
encontrava emigrado nas Américas, e que lhe tinha vindo fazer uma visita.
-Olá Alcinda! Ainda não mudaste as cuecas
amarelas desde ontem, hãm?!
-Oh! Que disparate Zeca! Enquanto corava da
cor do cavalinho dos correios.
-Olha, apresento-te o meu rebento mais velho!
Evanildo Johnson (em homenagem ao seu champô
preferido), era um rapaz para os seus 28 anos, bem-parecido e educado, que
prontamente lhe estendeu a mão e se curvou numa pequena vénia em sinal de
deferência e respeito.
Estiveram um bocado a conversar os três em
temas amenos e fúteis, quando de repente Evanildo estica e encolhe os braços
numa dança qualquer, tão esquisita quanto inesperada, continuando a conversação
como se nada tivesse acontecido. E este até nem foi o gesto mais inusitado.
Sim, porque Evanildo de cada vez que acabava uma frase tinha como tique, dar-se
uma sonora palmada na nádega esquerda ao mesmo tempo que arrufava um som rouco
do nariz, como um leitão em proximidade da Bairrada.
Mas como Zeca nem pestanejou, Alcinda também
não deu parte fraca, e continuou disfarçadamente o entabulamento da conversa
rematando com um simples mas eficaz: "Bom, vou trabalhar mais um bocadinho
senão as cartas não abalam!".
Lá se despediram com um beijo de cada lado e
mais uma auto-pancadinha de nádega de Evanildo, saindo este com o pai enquanto
vociferava inapropriadamente, aos risos, do vernáculo mais potente que Alcinda
já tinha escutado e que teria feito com certeza até empalidecer a batina do
Sr.Prior.
Ficou-se um tempo a pensar, que personagem
mais estranha este luso-americano. Os gauleses acham que os romanos são doídos,
mas este América não se fica atrás!
Já era hora de fechar o estabelecimento, e
apressou-se a virar o cartaz de "fechado", para que mais ninguém lhe
acenasse a querer enviar nem que fosse uma mula embrulhada em tafetá de oiro e
popelina de seda via postal.
Saiu a matutar naquele bizarro encontro! Um
rapaz tão bem posto e parecido, de discurso tão interessante, mas que depois
estragava tudo com trejeitos, impulsos e calão repentino, era cousa ou do demo
ou de muito circuito cruzado...o que vale é que hoje já ninguém é queimado na
fogueira, senão este era logo atirado...Também havia a hipótese de muita droga
naquelas veias, mas o jovem não tinha nada aspecto de snifador de linhas...
Ao virar da esquina, qual a sua surpresa ao
ver Evanildo ajudando um invisual a atravessar a rua, num comportamento e
atitude cívica exemplares! Passos curtos e respeitosos, tendo sempre em atenção
as pedras da calçada, guiando o ceguinho em segurança até a outra margem. Mal
se despediu, deu meia volta e contorceu-se todo num espasmo só, abrindo muito a
boca para rosnar numa gargalha única, três impropérios de rajada para a parede.
Impropérios esses, que aludiam de forma jocosa a apêndices anatómicos diversos,
que excluíam obviamente o nariz e as orelhas. E o espantoso é que no segundo
imediatamente seguinte, Evanildo transfigurava-se e cedia passagem de uma forma
elegante e cavalheiresca a uma donzela que se lhe cruzava nesse instante. Que
raio...!
Decidiu então segui-lo pelas ruas e ruelas da
cidade, pensando que mistério entronava este personagem das Américas!
Evanildo passeava em ritmo ligeiro, ora
socando o ar no melhor estilo boxeur,
ora gesticulando sozinho em fracções de segundos mirabolantes! Perseguiu-o
durante três quartos de hora em reviravoltas de percurso erráticas, tentando
adivinhar onde iriam parar aqueles rasgos de aparente insanidade.
Nisto, quando vagueavam os dois a meia
distância pela avenida, uma ambulância fez uma travagem repentina, guinchando os pneus e
largando uma nuvem de fumo de borracha que empestou o ar. Dela saíram dois
enfermeiros corpulentos, de barba russa e bata branca imaculada. Lançaram-se a
Evanildo como se não houvesse amanhã (neste caso sábado...), imobilizaram-no,
meteram-lhe um colete-de-forças, e enquanto o pobre desgraçado esperneava e
gritava "Aqui del rey, Aqui del rey!" meteram-no na ambulância e
chiaram novamente os pneus com a mesma fumarada de antes, desaparecendo no
asfalto que estava livre e desimpedido.
Alcinda ainda conseguiu ver as letras
pequeninas na ambulância: "Hospital Psiquiátrico de Lorvão"...
Desde então, nunca mais viu Evanildo...
Síndrome de Gilles de La Tourette: “é uma patologia rara de origem neurológica que se manifesta por tiques motores incontroláveis e inadequados ou vocalizações repetidas e fora do contexto. Os tiques podem ser palavrões ditos repetidamente em voz alta fora do contexto, movimentos bruscos e estranhos, caretas, movimentos espásmicos, fazer sons de animais, entre outros gestos.”