segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"A Voz"


A contracção do diafragma dizem que é o mais importante! Cria uma pressão negativa dentro da caixa, enchem-se os alvéolos de ar puro, para passivamente e com nova ajuda do diafragma ser o mesmo ar de moléculas a sair, trespassando as cordas vocais compelido em agudos e graves, para por fim escapulir pelas coanas e soar!

Muitas formas há de expressar a voz e isso fica bem claro no nosso idioma: falar, palrar, vociferar, gritar, cantar, guturejar, e até praguejar...ficando impressas pelo povo como ele muito bem o sabe: “voz de cana rachada”; “voz de bagaço”; “vozinha aflautada”; “voz de trovão”; “vozinha de anjo”, entre outras... Mas todas utilizam o mesmo mecanismo fisiológico, sendo claro distinguir o falar do cantar. Se há vozes perfeitas para a locução, devem-se na maioria dos casos ao timbre, à forma de articular as palavras, à dicção, à ênfase impressa que confere o balanço à frase.

As locuções podem ser graves, abafadas, transmitindo solenidade, rigor e respeito. Podem ser num ritmo pausado e calmo, dando a sensação de discurso congregador e irrepreensivelmente estudado. E até podem ser mecanizadas e secas, como se calhar se pretende para preencher um lugar em informação de rádio ou televisão. Mas as minhas preferidas eram as de Alice Cruz, antiga voz off da RTP, cujas peças transmitiam sempre uma tonalidade modal e constante que não interferia com os conteúdos visuais dos programas, mas ao mesmo tempo com pequenas harmoniosas inflexões de voz que destacavam os clímaxes específicos do galope do documentário. Inigualável!

Insuperável era também Ana Zanatti. Sou sempre invadido por uma serena calma quando os silêncios são ocupados por esta senhora. Todo e qualquer relato me parece um flutuar de sons impecavelmente melodiosos que me transporta visualmente para os locais e acção relatados.

E impossível seria aqui não recordar as vozes memoráveis de Raul Durão, Luís Pereira de Sousa, Carlos Cruz, entre outros. São vozes que estão no nosso imaginário, e que assim que as ouvimos as reconhecemos pelas suas características únicas e sonoramente familiares.

Mas os mistérios da voz são imensos, com vozes tecnicamente perfeitas, palatos altos, diafragmas treinados, rinofarínges límpidas e ressonantes, e há até quem puxe pela rouquidão para marcar a sua linha. Estas características são todas exploradas nas suas mais variadas vertentes, no expoente máximo do usofruto e utilização da voz, que é o canto.

Isto porque no canto, a exploração e variação de géneros e estilos, mais para além das influências de outros factores externos, como a imagem, a postura, os arranjos musicais, e até o efeito psicológico do exemplo de figura mediática, faz com que individualmente tenhamos vozes interpretativas muitíssimo diferentes umas das outras.

Uma coisa é certa e comum. Para que os cantores tenham sucesso e consigam atingir os seus ouvintes e seguidores, não basta possuir uma voz divinal ou cantar tonalmente sem desafinações. Têm de saber canalizar a emoção da música pela voz, e de a interpretarem, dando-lhe um corpo e uma consistência que prenda o nosso ouvido.

Um exemplo disso é esta interpretação de Jennifer Holliday, no musical americano Dreamgirls: http://www.youtube.com/watch?v=kC_u_q-iND0&feature=related  (do minuto 3:28s até 8:02s). Esta performance é para mim o exemplo máximo daquilo que deve ser uma materialização de um trecho. Força alternando com subtileza, interpretação, entrega à música, e sobretudo uma emoção transmitida por doses perfeitas, com arranques que se vão libertando ora devagar ora com ímpetos de arrebato inigualáveis. Ímpar!

Poderia citar inúmeros exemplos de vozes marcantes, mas pego nos exemplos de Amália Rodrigues e Bjork. Não têm nada em comum, mas possuem um elo que as une e lhes confere um lugar no meu top. Sem serem possuidoras de uma voz perfeita, ambas riem, choram, vivem, dançam e exprimem-se no canto com um sentimento de tal modo intenso, que quando cantam tudo o que dizem se agiganta de forma imensurável, tocando-nos profundo na essência. Mesmo quem não percebe a letra fica enganchado naqueles sons e naquela presença.

O mesmo se passa com aquele apelidado de “The voice”. Independentemente da época e dos seus meandros artísticos, nomeadamente a suposta ligação à máfia italiana, esta foi sem dúvida a mais particular voz masculina até hoje. Sinatra, é ainda hoje uma referência como cantor e intérprete, porque o seu registo vocal é inimitável e singular. Tantos outros haveria para escolher com projectos na mesma linha (Harry Connick Junior; Michael Bublé; Robbie Williams), que seria preciso aplicar uma teoria do fole para descrevermos todos os novos talentos musicais...

Mas como gostos não se discutem, mas sim partilham-se, aqui fica esta voz em jeito de surdina...

Abraços afinados